Não dê esmolas

Reduziu lentamente a velocidade do seu carro até parar a uma distância segura do carro à frente, um utilitário branco, marca Volkswagen, fabricado há não mais que dois anos.

Enquanto presta atenção no carro à frente, vê surgir ao lado esquerdo do utilitário um homem que caminha sem pressa, trazendo, no rosto que já não é jovem, um sorriso sem esperança, e na mão esquerda, alguns folhetos pobremente impressos que eram ofertados aos motoristas com sua mão direita. Acompanhando-o com os olhos até que alcançasse a janela de seu carro, balançou o indicador, se recusando a receber o folheto sem sequer abrir a janela.

Ainda que não tivesse conseguido ler o que o folheto comunicava, era plenamente capaz de imaginar do que se tratava: alguma história comovente que fosse capaz de atrair mais alguns trocados para o bolso mal costurado do homem, ou uma súplica como aquela já famosa "vendo doces porque não posso vender minha sogra" que, diferentemente da história comovente, aposta no humor para alcançar exatamente o mesmo fim. Quando as especulações sobre o conteúdo do folheto cessam em sua mente, o homem já não está mais à vista, mas o utilitário à frente ainda está parado, e, erguendo um pouco os olhos, ele confirma o que já era de se imaginar: as luzes do semáforo ainda estavam vermelhas.

Não muito longe das luzes vermelhas, afixada no poste que sustenta o semáforo, uma pequena placa azul escuro de letras amarelas que, por algum motivo desconhecido, hoje não passou despercebida pelo motorista, imprime o apelo "Não dê esmolas, ajude de verdade.", acompanhado de um número de telefone, composto apenas pelos dígitos quatro e três, e que, portanto, era bastante fácil de memorizar.


Diante do número duzentos e três, ele gira a chave tetra por duas vezes até ouvir o estalo da fechadura indicando o destravamento da porta, que ele acaba de abrir e, então, voltar a fechar, agora já do lado de dentro de seu apartamento, mas não sem antes se certificar de que ainda lembra a sequência de oito números que compunha o número de telefone impresso na placa afixada ao semáforo.

Ao virar seu corpo novamente para dentro de seu apartamento, com o olhar levemente perdido em direção ao centro da sala, que não oferecia muito conforto, apenas um sofá, um tapete e uma televisão apoiada sobre um banco que, desde que se mudara para este apartamento, desempenha função de rack, ele se pergunta Teria alguém alguma vez já ligado para aquele número?

Já sentado no sofá diante da televisão desligada, ele volta a se questionar O que será que diria o atendente? Me pediria para informar a localização do semáforo? Me pediria para descrever o tal homem que precisaria de ajuda de verdade? Precisaria eu mesmo me identificar ou poderia me manter anônimo? Ele enfim se desconecta da cadeia de perguntas com o barulho da televisão. Muito provavelmente, ele a ligou tocando sem perceber no controle que estava ao seu lado, no sofá. Ele mantém a televisão ligada, mas baixa completamente o volume. A luz da televisão e as imagens do telejornal ajudam a habitar o apartamento onde mora sozinho.

Ele se levanta do sofá, se perde nos afazeres da casa pela próxima meia-hora, prepara sua janta de sempre, não muito sofisticada: pão com presunto e queijo, e um copo de suco natural de laranja, que, especialmente hoje, uma quarta-feira de clima ameno posicionada no calendário bem ao meio do mês de maio, era servida junto com a dúvida sobre ligar ou não para o número que permanecia intacto na sua cabeça. Plenamente abastecido e ainda sentado na mesa de jantar de apenas dois lugares que ficava espremida em um dos cantos da pequena cozinha, ele toma a decisão Amanhã pela manhã, vou fazer a ligação, sem pronunciar as palavras. Lavou a escassa louça da janta, deixou-a escorrendo ao lado direito da pia da cozinha, enxugou as mãos, desligou a televisão e as luzes a caminho do quarto e, depois de um banho rotineiro, se pôs a dormir reforçando, já com os olhos fechados, a decisão que tinha tomado na cozinha.


Quatro, quatro, três, foram os últimos dígitos discados por ele, por volta das sete e meia de uma quinta-feira sem nuvens. Já tinha tomado banho, tomado café, e essa seria a sua última tarefa antes de partir para o trabalho. Ansioso por descobrir o que exatamente iria acontecer assim que alguém do outro lado da linha atendesse a ligação, ele acha estranho ouvir o telefone chamar pela quarta vez e ninguém ter ainda lhe atendido.

A ansiedade durou ainda outras duas chamadas até que uma voz masculina disse Pois não? Pois não?, repetiu a voz masculina à beira de já encerrar a ligação, desconfiando ser engano. Olá! finalmente diz o homem, acompanhado de um Bom dia, senhor! Bom dia! responde o senhor do outro lado.

Achando o começo da conversa muito estranho, já que a voz masculina não anunciara, como de praxe em um atendimento público, o nome da repartição para a qual trabalha, o homem logo pergunta O senhor trabalha para a prefeitura? Sou aposentado há mais de dez anos, é a resposta que vem do outro lado da linha, emendada pela pergunta Com quem você deseja falar? Ah, desculpe incomodá-lo senhor, mas ontem avistei uma placa da prefeitura que imprimia este número de telefone e... Não dê esmolas, certo? interrompeu a voz masculina. Exato, ele respondeu. Umas duas ou três vezes por ano, me ligam justamente pelo mesmo motivo. Já contatei a prefeitura solicitando que atualizem o telefone impresso na placa, ou que a retirem de onde esteja afixada se o serviço já não é mais prestado, mas minha solicitação parece não ter feito a menor diferença. Se estas placas não estivessem a quatro metros de altura, eu mesmo faria o serviço, concluiu o aposentado.

Percebendo que a conversa se afastara, frase a frase, do lugar previamente imaginado, e observando seu tempo se esgotar no relógio de pulso que levava no punho esquerdo, ele se desculpa mais uma vez, deseja um bom dia ao senhor que pacientemente lhe atendeu e, finalmente, desliga o telefone.

Ao lembrar da aparência desbotada da placa, falou para si mesmo, em silêncio, a última frase antes de deixar seu apartamento em direção ao trabalho Era de se imaginar que estivesse desatualizado.


Da mesma maneira que não se pode imaginar que uma fruta de bela aparência esteja estragada sob a casca, ou que uma caixa de leite armazenada ainda na geladeira esteja vazia, frustrando a expectativa de quem se preparava para tomar uma vitamina gelada, não se poderia imaginar também que um dia inaugurado com muito sol e sem uma nuvem, se transformaria numa tempestade que o faria sair mais cedo do trabalho naquela quinta-feira.

Da janela do escritório observava os postes acesos apesar de o relógio apontar ainda duas e dez da tarde. A decisão de que seria melhor cada um se encaminhar mais cedo para suas casas foi tomada porque já era sabido que tempestades como aquela costumavam pôr em xeque o sistema de drenagem da cidade, e o bairro onde situava-se o escritório era um dos primeiros a ficar alagado.

Típicos de tempestades, os fenômenos que nos fazem imaginar um filme passavam um a um pelo pára-brisas do carro, ainda livre de qualquer gota de chuva.

As árvores se agitavam, a poeira da rua formava pequenos redemoinhos, clarões semelhantes a enormes flashes fotográficos circundavam a cidade, e os fios de luz chacoalhavam nos postes provocando pequenas quedas de energia que, ao ser restabelecida, poucos minutos depois, tirava quarteirões da escuridão, mas colocava os semáforos em modo inoperante, já que ao piscar a luz amarela eternamente para os quatro cantos de um cruzamento é como se o semáforo dissesse aos motoristas: "tive que sair e não volto mais hoje, resolvam-se entre vocês." Diante da missão dada por um destes semáforos encontrava-se ele batendo no volante com os dedos indicador e médio, denunciando a pressa em chegar em casa, e a aflição de ver à sua frente uma enorme quantidade de carros tendo que se "resolverem entre si."

Tentando administrar sua ansiedade, procurava pelo homem que no dia anterior ofertava folhetos. Por motivos não difíceis de se imaginar, ele não estava por ali. Enquanto a imagem do homem deixava a sua mente, o carro à sua frente, desta vez um carro de passeio compacto, marca Nissan, fabricado já há bastante tempo, continuava ali parado, e, erguendo um pouco os olhos, ele confirma o que já era de se imaginar: a luz amarela do semáforo ainda piscava, se recusando a organizar o trânsito do cruzamento.

Não muito longe da luz amarela, afixada no poste que sustenta o semáforo, uma pequena faixa adesiva de cor amarela com letras em preto que, por motivos que podemos muito bem deduzir, hoje não passou despercebida pelo motorista, imprime o apelo "Semáforo defeituoso? Ligue!" acompanhado de um número de telefone, composto apenas pelos dígitos oito e zero, e que, portanto, era bastante fácil de memorizar.